Educar na virtualidade: entre o niilismo e o desejo do sujeito professor

Katia Cristian Puente Muniz – Socióloga Doutoranda Psicanálise e Sociedade | UVA-RJ

A sociedade contemporânea coloca o professor diante de desafios e dilemas. O espaço social ganha novo desenho a partir de redes de percepção e relação com o conhecimento que migram de uma visão totalizante para fragmentada, a partir de um paradigma de atração do imago, com seus afetos e fantasmas em detrimento dologos, com suas utopias, sistemas e programas. Se durante muito tempo o primado da autoridade era a lei da ciência, a palavra impressa no livro, agora o live, o que vi na TV ou no youtube ganham autoridade simbólica. A exibição se sobrepõe à publicação, o performático ao ideal. Como destaca o crítico de arte Terry Eagleton estamos descentrados, ou na expressão do filósofo Regis Debray, vivemos no mundo da videosfera, onde o ponto ocupa o lugar da linha e o futurocentrado se perde no autocentrado. Esse cenário questiona noções clássicas de verdade, progresso, objetividade, futuro, projeto. Grandes narrativas emancipatórias passam a ser revisadas. Os -ismosperdem legitimidade para as interpretações contingentes e ganham cena os –wares. O efêmero, o simulacro e o circunstancial conquistam terreno. O professor como o sujeito forjado no significante moderno, foi apresentado ao mundo como um agente mediador da construção de trajetórias de vida, parte de uma engrenagem, vê-se diante de uma perda. Surge a inquietação. É possível promover a sua práxisdiante do mundo polissêmico e sedutor das redes sociais e dos recursos tecnológicos? Como interagir com bytes, realidade aumentada, virtual e mediada se fomos ensinamos diante de uma metafísica ocidental que a interação é com o humano, traduzido por psicólogos, médicos, historiadores e sociólogos em crianças, adolescentes, jovens e adultos?

É grande a probabilidade de o professor atualizar o niilismo, diante do abalo nos alicerces desses laços sociais. Vale lembrar que o nihil(nada) em Nietzsche aprisiona o sujeito nos padrões culturais de sua época (morais e princípios) e, sendo estes superiores a ele, o impedem em virtude de um ideal a ser seguido, de trilhar em sua vida, a partir de seus afetos e vontade própria. Seria como um desperdício da força, uma tortura, uma sensação de “em vão”, de incerteza, de falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja. Mas como evitar, se você cria uma percepção de si – diante da cultura da virtualidade – como um gadget, um apetrecho tecnológico simplificador como os miniaplicativos que encontramos em nossos smartphones? E caso faça um upgrade, poderá constituir-se como professor widget, tal qual os programas que funcionam como atalhos para serviços. Então no discurso capitalista o sujeito professor busca uma storee… voilà, se torna, como modela a professora Ligia Futterleib, um professor 6M: mediador, “motivador” (incentivador), modelo de educação, multimídia, multiplicador e maestro (organiza o processo).

Mas como diz Cora Coralina, “não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos”. E como a música em constante construção, pensar a educação na virtualidade significa ratificar um paradigma da possibilidade. Da melodia depende o verso e este depende da melodia, e dessa música renasce em cada cantar aquele que a gerou. Então porque a cultura da virtualidade poderia paralisar a ousadia docente? Se o novo assusta, não há velho sem novo, nem novo sem velho. É dialético.

Podemos buscar explicações no paradigma das certezas. Durante muito tempo uma revolução (quase) inquebrantável se estabeleceu: se antes como legado de uma pensar contemplativo antigo e medieval, o homem era uma substância como as outras, cópias de um ideal de ser, universal e prévios a qualquer dispositivo, isso foi alterado com René Descartes. Sua participação na revolução científica do século XVII inaugura a modernidade e o sujeito da ciência. A capacidade de conhecer passa a depender da subjetividade do indivíduo, identificada com a consciência e, segundo o psicanalista Garcia-Roza, dominada pela razão que admitia poucas “franjas” abaixo do “umbral” da consciência. O eu cartesiano puro pensamento (res cogitans), torna-se um ser pensável que usa a dúvida metódica como caminho para chegar às certezas indubitáveis, à verdade. Surge o seu cogito ergo sum, penso, logo sou. Se duvido, eu penso; se penso, eu sou. Esse pensar cartesiano alimenta todo o pensar científico.  Mas a jovem ciência, com a verdade e a certeza que se entrelaçam, faz emergir um sujeito que o filósofo  Giorgio Agamben  prenuncia dessubjetivado por práticas de saber e de poder que, ao contrário do que preconiza a emancipação pela consciência, o sujeitam, o capturam, orientam, determinam, interceptam, modelam, controlam, asseguram os gestos, as condutas, as opiniões e os seus discursos. E como seus frutos, as tecnologias, analógicas ou digitais, podem seguir o mesmo caminho de dessubjetivação dos indivíduos na contemporaneidade. Por sua vez, o disciplinamento, a delimitação de fronteiras como questiona Edgar Morin, a docilização expressa por Foucault e a violência simbólico observada por Bourdieu ainda são fortes elementos da cultura moderna. As críticas desse todo-saber, da certeza, da horizontalidade surgem dos mais diversos campos. Georg Simmel e Norbert Elias questionaram o estruturalismo dicotômico (sociedade e indivíduo; natureza e cultura; professor e aluno; educação formal e informal).  Jürgen Habermas pensa na possibilidade de ação comunicativa. Zygmunt Bauman traça as reflexões das inseguranças ontológicas da pós-modernidade como caminho para viver no mundo líquido. Byung-Chul Han ao caracterizar a sociedade do cansaço e da transparência, compreende que estamos no “inferno do igual”, onde a alteridade, a estranheza e a diferença são caçadas como lobo-maus da sociedade aplanada.E quanto mais fragmentado o campo social e suas amarrações, maiores as tentativas de padronização.

 Então como não se colocar como gadget? Como criar a sua melodia? Como educar entre um zappinge outro? Mas o que impulsionaria esse deslocamento do sujeito professor diante de um mar de blendde Mídias, livestreaming,rapidLearning,e-book, objetos de aprendizagem, simuladores, games e tantos outros cardápios instrumentais que viabilizam uma aprendizagem ativa, colaborativa e flexível?

Para auxiliar nessas indagações, a travessia nos mares psicanalíticos sobrevém como uma fala em enfrentamento. A noção do sujeito do inconsciente construída por Freud emerge como uma ferida narcísica. Existem aspectos do sujeito que escapam. Há um outro em mim diferente do meu eu. Onde penso, nem sempre sou.  O atravessamento dessa noção de sujeito indivisível feita por Freud, nos permitiu conhecer um sujeito singular, no qual a consciência não é o princípio operador, mas parte de uma economia com as nossas pulsões inconscientes. Em consequência àsubversão freudiana ao cogito cartesiano, apresenta-sea efemeridade da verdade da ciência, a incompletude das teorias, o furo nas estruturas explicativas e principalmente,sujeito da ciência apresenta-se como o sujeito do desejo.Deste cotejamento advém um tempo de escuta. Se é sujeito dividido (inconsciente, pré-consciente, consciente/ isso, eu e supereu), é esse spaltung /clivagem /cisão/ alienação /separação que torna o sujeito um sujeito, não há como produzir objetos de consumo do saber para suturar esses furos. Vivemos sempre uma falta, uma busca por satisfação pulsional. E ao contrário do que o sujeito cartesiano nos imprimiu, a dúvida não é o meio, mas o fim. E emprestando a figura de anima bela (bela alma) de Hegel em sua Fenomenologia do Espírito, enquanto professores devemos sair da posição de vítima e buscar saber em que medida colaboramos como a condição de suturamento do sujeito na ciência. A virtualidade nos permite esse caminhar. De sair do paradoxo da completude, já superado pelo matemático Göedel, de tentar gerenciar, de suturar, de dar consistência. É inescusável facear que o professor nega a causa de sua existência, porque este só se constitui sendo um sujeito dividido. E o sujeito barrado começa a questionar suas certezas. Penso onde algo me falta: é o desejo.E ao contrário de esvaziar a vontade do professor, o faz deslocar-se para novos endereçamentos. O professor, como um sujeito descentrado (sem centro, sem núcleo) é um sujeito em permanente constituição, como um feixe de representações, provisória, imperfeita e inacabada.A sublimação negocia com o gozo e permite o enlaçamento com o outro e com a multiplicidade de saberes.

A virtualidade por não ser certeza, nos desafia entre o real, o simbólico e o imaginário. Para o físico Ilya Prigogine, a ciência e a natureza passam por uma metamorfose, onde há mais probabilidades de que certezas. Tudo adquire um lugar paradoxal no mundo contemporâneo. Como linguagem tem metáforas, metonímias, deslocamentos, fantasmas que nos permite falar. Nos permite identificações com os traços mnêmicos do outro e deixar emergir o sujeito educador, cada qual com sua singularidade.  Isso provoca uma mudança na percepção da realidade, nos oportunizando, ao parafrasear o título da autobiografia do físico Marcelo Gleiser, viver com “a simples beleza do inesperado”. O pulsional, o desejante são nossos inesperados. O professor é antes um sujeito do desejo. Então vamos ao gozo. Viva o inesperado. Afinal, como diz o poeta Paulo Leminski, “o outro que há em mim é você e você assim como eu estou em você eu estou nele em nós”.

Referências

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