A culpa não é do sol | Mateus Saraiva
Mateus Saraiva | Doutorando em Educação – UFRGS
Em Caravanas, Chico Buarque – com ironia – atribui ao sol a lógica fascista que bate e mata, dividindo dois “Rios”, partilha desigual que somente alguns privilegia. A música de trabalho de seu último CD é canção síntese do presente momento histórico: da democracia que pulsa, carregando a proposta de algo novo ao autoritarismo que cala, ora por opressão explicítica, ora pelo sufocamento – político, moral e/ou financeiro – que não possibilita alternativa.
Caro Chico, como bem sabe, a culpa não é do sol que a todos ilumina, mas dos muros que segregaram (e segregam) a população brasileira, apoiados por um conservadorismo que ignora a diversidade dos que clamam por democracia. Ao analisar a garantia do direito à educação, por meio dos fundamentos e da efetividade da construção do sistema de educação, o processo latente torna-se visível. Basta recorte longitudinal das políticas educacionais, para observar um dúbio processo no pós-88: de inclusão, pelo incremento das matrículas e da diversidade, vistas tanto em Leis como em sinopses estatísticas; mas também de manutenção da exclusão.
O que assusta, no presente momento, é o velho travestido de novo. Se a justiça social ainda está distante de ser alcançada, o discurso-consenso de enfrentamento dos muros que dividem e legitimam desigualdades, vem perdendo força para oratórias conservadoras. Geralmente, estes estão agregados em torno de um discurso moralista nos costumes e liberal na economia, compreendendo o Estado como uma empresa, o cidadão como consumidor e o direito como bem a ser consumido. Um direito assegurado aos que têm valor de mercado. Infelizmente, o discurso demodeem nome da liberdade vêm com uma pitada de anacronismo: afinal,colocar preço em vidas humanas, não é novidade em nossa história.
Assim, a premissa básica à construção da democracia – a garantia aos direitos humanos – é posta em xeque, assim como as instituições e os sujeitos que a constituem. Conforme já apontamos em publicação tocante ao Ensino Médio[i], a maioria do debate acadêmico e a legislação destacam a necessidade de enfrentamento da segregação, por meio de fundamentos que contemplem o aprofundamento do direito a educação e de políticas que viabilizem tal garantia. Porém, considerando as mudanças em curso, com nova roupagem e ampliação de parcerias privadas, de realinhamento às concepções neoliberais, corte nos investimentos sociais e valorização do mercado como parâmetro de qualidade, é possível observar que o receituário da negação a direitos, que nunca saiu da disputa política no Brasil, tem adquirido poder de agenda.
Cabe observar, todavia, que mesmo sendo símbolo do retrocesso, o discurso conservador encontra base em insatifações legitimas. Quando trata-se de educação, decorre – dentre outros motivos – da descrença nas instituições. Se houve o aumento das matrículas e no financiamento, também percebe-se a manutenção de desigualdades. Em recente pequisa[ii], detalhamos – por exemplo – que em escolas de Ensino Médio que são únicas em seus municípios, menos de 50% possuem laboratório de Ciências e Sala de Atendimento Especial (SAE). Sobre a formação docente, ressaltamos que metade das escolas tem 55% ou menos dos professores com a licenciatura adequada ao componente curricular que lecionam: apenas 11,8% das aulas de Sociologia são ministradas por licenciados na matéria, assim como 21% das de Artes, 23,1% de Física e 26,1% de Filosofia. Até mesmo os componentes que a nova legislação pretende ampliar – Língua Portuguesa e Matemática – apresentam deficiência: 75% e 68,6% de adequação, respectivamente. Se a solução está na educação, qual é a qualidade do que está sendo oferecido?
Em nossa percepção, descamos que o principal enfrentamento está em valorizar o docente, além de lecionarem componentes curriculares para o qual não tem formação, praticamente a metade dos professores do universo analisado em artigo tem um contrato temporário. Sem uma política de melhoria dos processos seletivos, de estabilidade com carreira, de formação em serviço e de remuneração competitiva, como alcançar as metas de acesso e qualidade no País? E sem alcançar tais metas, é possível derrubar os muros que nos dividem?
Vale lembrar que se a crise na educação é uma opção política – mas que essa crise é consequência tanto da visão com a qual se enxerga o fenômeno quanto da realidade que é traduzida pelo modo de enxergar. Muitos pagam com a vida pela coragem de entender que a culpa não é do sol, seja por acreditarem na escola como uma porta aberta nesse muro, quanto por lutarem por sua derrubada, vide menino Marcos Vinícius e Marielle Franco.
A pauta do momento tem sido mudar a lente, adotando o discurso conservador como princípio, o mercado como norma, entendendo a educação como critério legitimador de desigualdades – tirando a gerência das políticas públicas da mão das instâncias democráticas. Nesse sentido, torna-se ainda mais relevante a construção participativa como fundamento, com direitos assegurados a tod@s. Cabendo assim, às políticas sociais, o enfrentamento das desigualdades, com diagnóstico preciso e políticas e programas que assegurem cidadania plena.
Fora disso, é a barbarie que, na derrubada dos muros, embaça os olhos e a razão. Diferentemente do sol, a barbarie também é culpa nossa.
[i]LUCE, M. B. ; SARAIVA, M. ; CHAGAS, A. . Ensino médio em disputa: uma reforma que se distancia do debate acadêmico. In: V Seminário da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE)– Regional Sul, 2018, Passo Fundo. Políticas educacionais como campo de disputas: tensões entre o público e o privado, 2018.
[ii]SARAIVA, M. ; CHAGAS, A. ; LUCE, Maria Beatriz . Reforma do ensino médio no Brasil: legitimação da precarização em nome da flexibilização. In: VI Congresso Ibero-Americano de Política e Administração da Educação; IX Congresso Luso-Brasileiro de Política e Admiistração da Educação, 2018, Leida e Barcelona, Espanha. Política e gestão da educação básica, pós-obrigatória e da educação superior.Recife, Brasil: ANPAE, 2018. v. 1. p. 305-308.